O Papel da Sociedade no Sofrimento Invisível – Uma Análise Psicanalítica de "Adolescentes"
- Matheus Ussam
- 27 de mar.
- 5 min de leitura

O Papel da Sociedade no Sofrimento Invisível – Uma Análise Psicanalítica de "Adolescentes"
A série Adolescentes tem provocado discussões intensas sobre temas como misoginia, incelismo, feminicídio e bullying. No entanto, há um aspecto mais profundo e pouco explorado: o papel da sociedade na construção desses indivíduos e na legitimação de seus atos extremos. Não se trata de uma questão de culpabilização única, mas de um fenômeno coletivo em que todos – direta ou indiretamente – contribuem para a formação de sujeitos que veem a violência como saída.
Ao contrário do que a recepção inicial da série pode sugerir, reduzir o enredo a uma simples narrativa de ódio às mulheres seria um erro. A questão central é muito mais ampla e diz respeito à maneira como a sociedade constrói os seus excluídos, marginalizados e rejeitados, permitindo que ideologias destrutivas eclodam como resposta ao isolamento e à dor.

O Olhar da Sociedade: O Silêncio da Vizinhança
Um dos elementos mais simbólicos da série é a personagem Eileen, a vizinha idosa. Em uma cena crucial, ela aparece varrendo a calçada enquanto o pai do jovem acusado encontra sua van pichada. Eileen assiste à cena com um gozo perverso e silencioso, mas quando questionada sobre o que viu, nega qualquer conhecimento. Mais tarde, observamos a mesma vizinha do lado de dentro de sua casa, em segurança, fofocando sobre a situação.
A atitude da vizinhança ilustra um comportamento social comum: a cultura do cancelamento e da exclusão punitiva. O pai do acusado, agora isolado, não recebe nenhuma ajuda para limpar o veículo vandalizado. Ele e sua família já foram julgados e condenados pelo tribunal da opinião pública, sem qualquer reflexão sobre os fatores que levaram ao trágico desfecho.
Todos nos tornamos essa vizinha em algum momento. Todos nós, em certa medida, escolhemos ignorar sinais de sofrimento e exclusão, nos protegendo na nossa falsa superioridade moral.
O Papel da Escola: Subserviência e Negligência
Outro ponto negligenciado no debate sobre a série é a forma como a escola e seus agentes reforçam a exclusão e os papéis sociais impostos aos jovens.
O aluna que espancou o colega de classe é acolhida pelos professores, mas o colega que zombou dele dizendo "apanhou de mulher" não recebe nenhum tipo de correção ou intervenção.
O jovem acusado de feminicídio foi alvo de bullying repetidamente, mas isso foi tratado como uma questão menor, algo sem consequências futuras.
O que acontece quando alguém cresce ouvindo que não é bem-vindo em lugar nenhum? Quando ele internaliza que seu sofrimento não importa? O que sobra para quem sempre foi rejeitado?
O Incelismo Como Construção Social
A cena em que o jovem acusado busca validação da psicóloga forense é reveladora. Ele não diz que foi rejeitado pela garota que gostava, mas que foi humilhado a ponto de ser comparado ao pior ser humano possível. Essa narrativa de rebaixamento absoluto é um dos gatilhos da identidade incel.
Os chamados incels (involuntary celibates, ou celibatários involuntários) não nascem odiando mulheres. Eles nascem buscando pertencimento. Quando são excluídos do convívio social, encontram comunidades que oferecem acolhimento – ainda que esse acolhimento seja baseado no ódio e na vitimização.
O incelismo não é apenas um fenômeno individual, mas um sintoma social. Freud, em Psicologia das Massas e a Análise do Eu, já descrevia como indivíduos rejeitados e desamparados encontram pertencimento em grupos que alimentam suas frustrações. Essa dinâmica cria uma massa de ressentidos que, juntos, potencializam seu ódio e encontram um inimigo comum: as mulheres.

O Superego Punitivo e a Construção do Ódio
Em O Mal-Estar na Civilização, Freud afirma que a sociedade impõe regras que moldam a identidade do sujeito, mas o faz de maneira punitiva. Esse mecanismo é representado pelo Superego, uma instância psíquica que funciona como um juiz severo e, muitas vezes, tirânico.
No caso da série, podemos observar a ação desse Superego coletivo quando o pai do jovem acusado não o defende contra o bullying. A mensagem transmitida é clara: "eu também te rejeito". O jovem, sem suporte, precisa encontrar um novo pertencimento, e esse pertencimento se dá na cultura incel, que oferece um discurso de revanche e vingança.
Não há justificativa para seus atos, mas há uma explicação para a trajetória que o levou até ali.
A Sociedade Como Criadora do Falso Self
Donald Winnicott nos ensina que o ambiente deve ser adaptado para o bebê, e não o contrário. Quando isso não acontece, a criança precisa se adaptar ao ambiente para sobreviver, criando um Falso Self – uma identidade construída para ser aceita, mas que esconde a verdadeira subjetividade.
A rejeição social intensa leva alguns indivíduos a abandonarem completamente o seu True Self (o eu verdadeiro) e adotarem um Falso Self, onde suas frustrações são canalizadas em uma causa maior, muitas vezes destrutiva.
A sociedade contribui para esse processo quando exclui, ridiculariza e ignora indivíduos que não se encaixam no padrão aceitável. Em vez de acolhimento, eles recebem desprezo. E o desprezo tem consequências. Então sim, somos todos culpados, viramos a cara ou, como Eileen: “não vemos nada”, mas na verdade tem um dedo, uma digital na pichação daquela van.

Ciclo da Violência e a Responsabilidade Coletiva
A violência não surge no vácuo. O pai do jovem, ao ser rejeitado pela vizinhança, responde com agressividade. A vizinhança, por sua vez, apenas reforça o isolamento daquela família. O jovem excluído encontra no ódio uma forma de se sentir pertencente.
O ciclo se repete, alimentado pela negligência da sociedade, pela sua incapacidade de lidar com indivíduos que fogem ao padrão esperado.
A vizinha, ao negar ajuda, reforça o recado: "vocês não pertencem mais à sociedade". E quando alguém não pertence a lugar nenhum, ele precisa criar seu próprio espaço, mesmo que esse espaço seja construído sobre ruínas.
A Sociedade Como Coautora da Tragédia
O que Adolescentes nos mostra é que todos nós temos um papel na construção da violência. Não apenas os pais, os professores ou os policiais, mas também os vizinhos, os colegas de escola e os espectadores silenciosos da dor alheia.
A psicanálise nos ensina que não há crime sem história, não há ódio sem origem. A sociedade, ao criar guetos de exclusão, fabrica seus próprios antagonistas. O jovem que se tornou criminoso não nasceu odiando, ele foi ensinado a odiar através da rejeição.
A pergunta que fica é: quantas vezes ignoramos alguém que pedia ajuda sem palavras? Quantas vezes fomos a vizinha que simplesmente fechou a cortina?
Se queremos evitar que tragédias como essa se repitam, precisamos mudar a forma como olhamos para os nossos excluídos. Porque, no final, o problema nunca é apenas "aquele menino". O problema sempre somos todos nós.

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